Para a autora, a visão neoliberal de administração do estado é uma visão distinta da visão societal e não é a toa que a autora considera que tais politicas foram implantadas limitadamente em administrações municipais. Enquanto propostas societais partem de baixo para cima, a autora enfatiza, as propostas de resultados são construídas “de cima para baixo”. Esse é o problema da gestão proposta por Marchezan: ela oculta a sua proposta de organizar a Prefeitura como uma grande empresa, isto é, ter o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição, exatamente o mesmo processo que, como Marilena Chaui em sua obra Escritos sobre Universidade, e que levou a bancarrota as universidades públicas federais. Marchezan quer trazer esse modelo para a Prefeitura de Porto Alegre. O que Marchezan não revela: que a visão societal e a visão empresarial que defende são inconciliáveis.
Modelo Frankestein de administração pública
Por esta razão, seus conceitos de governança e gestão são o equivalente a um modeloFrankenstein de administração pública.No romance da escritora Mary Shelley, o doutor Victor Frankenstein é o estudioso de alquimia e ciências naturais dedicado a descobrir os mistérios da geração da vida, criando um ser humano gigantesco, a partir de partes humanas. A criatura, no entanto, foge ao controle do seu criador e essa é a metáfora que serve para entender exatamente como funciona a proposta de governo de Marchezan para a cidade: da mesma forma que o cientista, Marchezan busca criar vida na cidade, mas seu projeto é monstruoso porque recolhe pedaços de concepções de organização social distintas e contraditórias entre sí .E como o monstro e sua criação tem relações conflituosas, esta é a realidade dos programas do PMDB/PSDB, eles também tem uma relação conflituosa com a sociedade, e os seus fantasmas voltam a perseguir seus criadores, como nas manifestações de rua contra os governos Michel Temer e José Ivo Sartori. É o que aguarda Marchezan se eleito.
Construídos a partir de conceitos e significados extraídos de modelos contraditórios entre sí com o único objetivo de “agradar” a diferentes públicos, os objetivos do plano de governo de Marchezan podem ser reunidos em dois grupos. Os primeiros são extraídos de uma visão societal de governo com o objetivo claro de atrair as parcelas sociais beneficiadas por politicas públicas de inclusão, que oneram o poder público e que são feitas por governos de esquerda com amplo alcance social e os extraídos de uma visão empresarial de administração que incorporam todos os mecanismos necessários para o exercício de cima para baixo do controle. Eles são apresentados ao leitor do programa como elementos coesos quando correspondem a conceitos integrantes de visões antagônicas, por isso afirmo que seu programa de governo é um programa Frankenstein.
Apropriação indevida de conceitos
A primeira apropriação indevida é o conceito de inclusão social. É uma inclusão social sem promotores e objetivos específicos por órgãos “É dever da Prefeitura proteger todas as pessoas em situação de vulnerabilidade e promover a inclusão social através do trabalho e emprego”. Marchezan não explica como uma administração carente de recursos irá promover a inclusão de todas as pessoas vulnerais, e é esta generalização que oculta que não há metas claras e precisas. O que é sua proposta se não sugerir a atuação junto a população de rua , mas como fazer isso sem referir-se a situação caótica dos abrigos públicos e a politica desenvolvida pela FASC? Marchezan deseja “dar respeito e carinho aos animais” mas não fala do investimento de recursos na Secretaria dos Animais, alvo de criticas dos defensores dos direitos humanos; defende a proteção “ao ambiente” sem referir-se a ampliação de recursos da SMAM ou da SMC, já que fala em “tratar a cultura como fator de inclusão e pertencimento comunitário”. O que é notável no discurso do candidato Marchezan é a dissociação da política pela própria politica, a anulação da política pela construção de um programa etéreo de governo baseado em intenções e não delimitação de objetivos. O discurso é progressista, mas é vazio de metas.
Fonte: Câmara do Senado – Notícias
A segunda apropriação indevida é que seu discurso quer-se colocar como fala da sociedade, Marchezan quer ser autor de um “grande pacto com a comunidade”, mas um pacto “diferente” porque exclui as “ideologias partidárias”. Somos aqui obrigados a nomear: nas palavras do filósofo esloveno Slavoj Zizek, este é o típico argumento do pensamento de direita, o fato de que oculta seu nome. Para Zizek, vivemos hoje mais do nunca tempos de posição politica, de oposição entre direita, defensores do liberalismo e esquerda, defensores do social. Para conquistar a eleição, a estratégia de Marquezan é negar a ideologia partidária que o alimenta,a ideologia de direita que defende o investimento mínimo do estado, a transferência do modo de administrar a iniciativa privada para o público com o objetivo de “iniciar um novo tempo para nossa cidade… longe de ideologias” Ora, a questão é justamente essa, a de que a tomada de “decisões melhores” que fará para a cidade é uma decisão …liberal, e esta, é uma ideologia como qualquer outra!
A terceira apropriação indevida é o conceito de participação. Marchezan apropria-se do imaginário da tradição da capital que construiu o Orçamento Participativo como um mecanismo democrático, forma do seu governo estimular “a participar das decisões públicas, ser ouvido, e ter a sua opinião respeitada pela administração pública.”. Mas não é exatamente assim que ocorre, não é? Desde o governo José Fogaça, os estudiosos do Orçamento Participativo apontam que o projeto perdeu suas características originais, definindo-se hoje como espaço manipulado pelo Poder Executivo que decide por recursos cada vez menores. Quer dizer, há muito tempo o OP não é mais o que era, culpa da politica de redução de investimentos no campo social, posta em prática pelos governos neoliberais do PMDB e seus aliados, entre eles o PSDB, partido cujo símbolos pouco emergem no programa do candidato.
A quarta apropriação indevida, decorrente das anteriores, é o conceito de Colaboração. Marchezan propõe transferência de obrigações entre o Município e os cidadãos, que “também gera deveres ao cidadão”. Na proposta societal, o cidadão é convidado a participar porque existem estruturas que garantem a participação efetiva: mas como pode o cidadão participar do Orçamento Participativo quando o seu funcionamento está afetado pela administração e manipulado pelos órgãos da administração pública que terminam por indicar os representantes no conselho? A essa apropriação indevida segue-se outra: a valorização dos servidores públicos. Marchezan sabe que os servidores são eleitores, que a administração depende de sua colaboração, que seu programa visa valorizar. Mas…não é exatamente isso que pensa Marchezan, é?
O Jornal SUL21, na edição de 9 de agosto de 2016, registrou que em reunião da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados que discutia a admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição que estabelece limites para gastos públicos federais por 20 anos (PEC 241/16), “ o deputado federal Nelson Marchezan Jr, candidato do PSDB à Prefeitura de Porto Alegre, se voltou contra servidores públicos que protestavam no local e os chamou de vagabundos”. Marchezan estava contrariado pelas manifestações dos servidores que exigiam a retirada da PEC, chamando-os de “desocupados” e “vagabundos” e, segundo o Jornal “ pediu que o presidente da comissão, Osmar Serraglio (PMDB-PR), evacuasse o local” Disse ainda, segundo o Jornal, que “as galerias e o plenário não são concorrência de desocupados. (…) Quem é mais vagabundo e trabalha menos consegue trazer mais gente. Só tem vagabundo aqui”, afirmou. Nesse sentido, seu Plano de Governo oculta uma mentira: ele quer dar ao leitor um texto que o faça crer que valorizar o servidor é aquilo que ele pensa, quando de fato não o é.É por isso que a fala no Congresso voltou-se contra Marchezan nas redes sociais, tendo vindo o candidato a desculpar-se, etc.
Os princípios de sua verdadeira visão
De fato, os princípios que fazem parte de sua verdadeira visão e que são explicitamente enunciados e que, portanto, não fazem parte do receituário societal mas do receituário neoliberal são os seguintes:
O primeiro é o de transparência. Para Machezan, é o definidor da democracia pois ninguém resiste ao argumento de que “Todos terão acesso a qualquer dado ou informação pública”. Mas os processos de transparência são baseados numa ilusão: a da possibilidade de transparência absoluta. Infelizmente, não se trata de que todos os processos devam ser de conhecimento do cidadão, ainda que desejável; se trata de que, com a imensa carga de informações a sua disposição, o cidadão tem roubada de si a possibilidade de decisão, simplesmente pela perda da visão geral do processo da construção de políticas publicas, substituídas pela atomização da informação em escala planetária. Seu argumento é que assim, “a sociedade terá meios para fiscalizar a prefeitura, e cobrar pela melhoria dos serviços. Planejamento: de curto, médio, e longo prazo. Pensar a cidade pra frente.” Esse é o tipo de concepção que esquece que adelegação de responsabilidades também é uma característica do Estado, de que o cidadão outorga ao Estado, em quem confia, o papel de gerir a administração.
Ao propor a transparência absoluta, ele revela que o cidadão não é capaz de confiar em seu estado, e portanto, em quem o administra! E de fato, na burocracia do serviço público, chefias tem o papel de fiscalizar inúmeros pontos que não são obrigação do cidadão, como o ponto eletrônico, as ausências e presenças de todos os servidores, que na prefeitura passam de 15 mil. Se o cidadão for fiscalizar um por um, como definirá os rumos da administração?. A resposta: quem definirá é Marchezan. Isso é que fica oculto sob o disfarce de um discurso de que tem “consciência de que nossa administração é passageira”, de que é “ necessário preparar a cidade para o futuro sem deixar de cuidar dela no presente”, etc.
Fonte: Rádio Câmara do Senado
O segundo é a defesa do principio de eficiência “realizar mais com menos”. Marchezan é bastante preciso, trata-se de “realizar obras com rapidez e baixo custo”. Esse é o tipo de equivalente mercantil que está por trás da compra de merenda inservível para crianças, na construção de obras do projeto Minha Casa Minha Vida que desmoronam. A questão é oculta por Marchezan é que a defesa do baixo custo tem como consequência a piora da qualidade. É nesse momento que Marquezan revela o industrial maquiavélico que está por detrás de sua fisionomia agressiva: no universo que pretende o candidato, a Prefeitura é apenas um orçamento a gerir, sistema de créditos e débitos a monitorar e formas de controle a executar.
Por isto sua ênfase oculta é nas formas de exercer poder, em “Monitorar a qualidade da prestação de serviços públicos. Estabelecer metas de desempenho” , e por esta razão se torna evidente que o objetivo de “Buscar a qualidade constantemente” é inconcebível numa visão de mundo que quer “realizar mais com menos”, simplesmente porque existem dimensões da vida administrativa que não admitem corte algum de recursos. Essa concepção de eficiência vê o cidadão como consumidor e não como sujeito de direitos, pois quer, ao final “avaliar a satisfação da população com os resultados oferecidos pela prefeitura”. Prefeitura como empresa, diga-se.
A segunda característica é tomar o respeito ao dinheiro público como argumento dissuasório com o objetivo de privatização e terceirização. É claro que o dinheiro público deve ser respeitado, etc, etc, mas redução de investimentos não é sinônimo de respeito. Esse argumento só serve para justificar a terceirização: é respeito com o dinheiro do cidadão economizar pagando salários aviltantes a trabalhadores sem qualquer garantia social ou é um flagrante desrespeito ético travestido de respeito ao dinheiro do cidadão?. Há obrigações sociais que a sociedade precisa saber que tem um preço que precisa ser pago, serviços públicos de qualidade e não exploração do trabalhador, redução de políticas públicas, que os pressupostos do programa do candidato revelam, e que significam a invasão do espírito da grande empresa na administração pública municipal. (continua)
Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). É colaborador dos jornais Estado de Direito, Sul21, Zero Hora, Le Monde Diplomatique Brasil, Lamula (Peru) e Sapo (Portugal) e Medium (EUA). Escreve para Estado de Direito semanalmente.